Era uma
típica tarde de verão carioca. Quente, abafada, antevéspera do Natal de 1979.
Eu tinha 15 anos, estava deitado no sofá da sala vendo TV, e
pelo canto da tela
se viam refletidos alguns enfeites da árvore. Estava bem distraído, quase
dormindo, passava um daqueles filmes da “Sessão da tarde” sobre Papai Noel,
quando ouvi minha mãe gritando o meu nome:
– Beto, corre aqui! (Beto vem do
Roberto de Paulo Roberto.)
Dei um pulo
e entrei no quarto dos meus pais, encontrando meu pai deitado imóvel em sua
cama e minha mãe o chamando pelo nome, esfregando carinhosamente a mão em seu
peito.
Meu pai não
reagia.
Aproximei-me,
percebi que minha mãe chorava e que meu pai permanecia inerte, com os olhos
ligeira e estranhamente entreabertos.
– Meu filho,
corre, consegue um socorro, chama alguém, pelo amor de Deus!
Corri até o
interfone, liguei para o porteiro, pedi ajuda e voltei para o quarto.
Percebi que
meu pai não respirava, então tentei começar a reanimá-lo, fazendo aquilo que
tinha visto em filmes... Comecei uma respiração boca a boca, mas achava que se
expirasse o ar dos meus pulmões nos dele, meu gás carbônico é que iria entrar,
então só enchia as minhas bochechas o mais que podia, com um ar que eu achava
que era o mais puro, e soprava através de sua boca. Vi que isso não adiantava,
pois seu tórax não se expandia, então depois de umas três ou quatro tentativas,
expirei a plenos pulmões. Uma parte do ar saiu pelo nariz, então fechei suas
narinas e tentei novamente. Já se passavam cinco minutos quando o sindico do
prédio entrou no quarto, começou a fazer massagem cardíaca e disse que tinha
chamado uma ambulância.
Meu pai não
reagia.
Um pouco de
sangue começou a sair da gengiva dele, e achei que eu o estava machucando com
minha inexperiente reanimação, então parei... Já se passavam mais de quinze
minutos, e minha mãe, em desespero, me mandou descer e ir buscar médicos em uma
clínica que ficava a trinta metros do meu prédio.
Antes de
sair, encontrei minha irmã, que chorava na sala, e perguntei a ela:
– Será que o
papai morreu?
Ela
respondeu:
– Nem fala
isso, Beto, nem fala isso...
Quando
cheguei à portaria, a equipe da ambulância estava subindo as escadas de acesso
ao hall dos elevadores.
Aliviado,
abri rapidamente a porta, e enquanto estávamos subindo, eles me perguntaram:
– O que
aconteceu?
Respondi:
– Acho que é
um infarto...
Aluno
aplicado de biologia que sempre fui, tinha que escolher o termo técnico...
Argh! Bem, minha intenção ou pretensão era ajudá-los a perder menos tempo, já
que eu sabia desde criança que meu pai tinha problemas cardíacos e realmente
achava que se tratava de um infarto.
Eles
balançaram a cabeça...
Assim que
entraram no quarto, a primeira coisa que fizeram foi tirá-lo da cama e passá-lo
para o chão, coisa que só vim a entender anos depois, quando estudando
reanimação descobri que a massagem cardíaca não é eficaz quando a pessoa se
encontra em uma superfície flexível como a de um colchão.
Começaram as
compressões torácicas, a ventilação com uma bolsa ligada a uma bala pequena de
oxigênio, prepararam soro, desfibrilador.
Meu pai não
reagia.
Fecharam a
porta, e longos 15 minutos se passaram antes que a abrissem novamente.
Um dos
rapazes da equipe me olhou cabisbaixo, botou a mão em meu ombro, e disse-me que
sentia muito.
Meu pai
havia falecido.
Meu pai era
um sujeito sensacional, inteligente, de caráter impecável, austero e por vezes
até severo, porém sempre carinhoso e muito atento com os valores que deveria
passar para os filhos.
Mas era
negligente com a própria saúde.
Fumante por
trinta anos, só parou quando já estava gravemente hipertenso e com um infarto
aos quarenta anos de idade na bagagem. Sedentário, quanto mais fraco ficava o
coração e mais sofrido era cada esforço, mais parado ficava. Dormia tarde,
acordava tarde, reclamava do intestino, passava o dia comendo pouco ou nada,
beliscando um pãozinho ou biscoitinho, e de noite comia seu famoso bife
acebolado com arroz ou purê de batata. Não me lembro de ver meu pai comendo um
legume, uma fruta, uma salada. Não me lembro de meu pai saindo para se
exercitar. Recordo-me, sim, do medo que ele tinha de morrer e nos deixar
precocemente, perdidos sem sua orientação, mas infelizmente hoje vejo que esse
medo também o paralisava e o impedia de fazer o que era possível para melhorar
suas chances. Tinha medo de se aborrecer (se “aporrinhar”, como ele dizia), de
a pressão subir, de ir fazer exames e os médicos descobrirem alguma coisa,
tinha medo de ser internado, tinha medo...
Emociono-me
com as memórias que construí com ele, como me incentivou à leitura, sempre
trazia novos livros (e brinquedos, claro), meu quarto era praticamente uma
biblioteca. “Tesouros da juventude”, “Moby Dick”, “O Conde de Monte Cristo”,
“Robinson Crusoé”, “Os três mosqueteiros”, a obra infantil completa de Monteiro
Lobato, de Júlio Verne – meu pai, um fanático por ficção científica.
Ficava ao meu
lado enquanto eu lia, engajado ele mesmo na leitura de seus autores favoritos,
Arthur C. Clarke, Kurt Vonnegut , entre outros, sempre pronto para tirar minhas
dúvidas, me explicar o significado daquelas novas palavras, daqueles novos
mundos. Era meu dicionário, amoroso, ali pertinho de mim, assistindo e
incentivando o que eventualmente acabou se tornando um grande valor para mim, a
leitura. Fez-me amar os musicais de Hollywood, encantar-me com a leveza de Fred
Astaire e Ginger Rogers, com as traquinagens de Mickey Rooney, com a beleza
estonteante de Ava Gardner e Rita Hayworth, rir dos filmes mudos com Chaplin,
Buster Keaton, e vibrar com o Robin Hood de Errol Flynn. Deixou-me fã do Tarzan
de Weissmuller, do Flash Gordon, do gibi... Incentivou-me também na música, ele
que enquanto tinha fôlego tocava uma gaita harmônica de primeiríssima
qualidade. Deu-me minha primeira guitarra. Os meus últimos presentes daquela
árvore do Natal de 1979 foram um metrônomo, para ajudar no ritmo das minhas
aulas musicais, e um encordoamento importado para minha guitarra.
Grande
incentivador em relação a tudo que fosse ligado à cultura, também se preocupava
em forjar meu caráter, pelo exemplo e pelas lições (e às vezes pelas broncas),
sendo sempre correto, honrado, honesto, solidário, aplicado, carinhoso e
companheiro.
Meu pai era leve, mas tinha uma barriga
imensa, típica de quem come muito de uma vez só à noite, uma barriga que
assustaria qualquer cardiologista, mas que naquela época para mim era um
almofadão cheiroso (como era perfumada e lisinha a barriga do meu pai), onde me
aninhava e dormia... Gostava de apertar e cheirar aquela barriga,
principalmente logo que ele saía do banho, e me sentia como quando apertamos e
cheiramos nosso travesseiro preferido. Era o cheiro do meu pai... Eu adorava
colocar seus discos prediletos e depois me deitar com a cabeça naquela
barrigona, feliz ao ver seu pezinho batendo ritmado no compasso da orquestra...
Ria com ele
com os discos de Chico Anysio e Juca Chaves – apesar de serem um pouco pesados
para minha idade, ele deixava. Por vezes, eu nem entendia a piada, mas adorava
vê-lo feliz, rindo. Bem, mais tossindo do que rindo, o que naquela época para
mim era normal, mas de fato já alertava para a gravidade dos problemas
cardíacos.
Meu pai herói, militar treinado que um dia
matou com um tiro de rifle um morcego que entrou no meu quarto! Deu a ordem
para que eu me escondesse debaixo da cama de minha mãe, tirou o rifle do
armário, e alguns segundos depois, ouvi o estampido...
– Beto, pode
vir!
Excitado,
fui ver o corpo do morcego, os despojos da batalha épica... Nossa, que orgulho
de ser filho do meu pai!
Perder meu
pai não foi nada fácil.
Durante
muito tempo me perguntei se não teria ingressado na medicina para aprender o
que deveria ter feito para salvar meu pai... Nunca me culpei, era apenas um
adolescente, mas hoje vejo claramente que a questão não era o que eu poderia
ter feito no dia em que ele morreu, mas sim o que ele poderia ter feito
enquanto viveu.
Tive a
oportunidade durante minha carreira de participar de várias reanimações.
Algumas bem-sucedidas, outras não. Minha formação inicial como anestesiologista
me possibilitou atuar em momentos críticos e de alta responsabilidade, fossem
eles ressuscitações cardiorrespiratórias, fossem outras situações de
emergência, por incontáveis vezes.
A essas
alturas, poderia me sentir mais realizado, e se não podia voltar para salvar
meu pai, certamente salvaria outras vidas. Mas por algum motivo, algo me
faltava.
Sentia-me
ainda frustrado como médico. Participava de forma importante, mas muito breve,
na vida daquelas pessoas, e não me considerava
útil na promoção da saúde delas, apenas no tratamento de suas doenças.
Quando ingressei na nutrologia, já com dez anos de atuação médica em anestesiologia,
estava inspirado por uma meta diferente, e depois de algum tempo ficou clara
para mim a minha real vocação dentro da medicina.
Não quis ser
médico para aprender a “ressuscitar meu pai”. Quis sê-lo para ajudar a mudar a
trajetória de tantas pessoas que também negligenciam sua saúde e que podem
interromper sua história nessa vida prematuramente, ceifando de seus entes
queridos as memórias que ainda teriam para criar. Sim, tenho e entesouro as
minhas, mas gostaria tanto que meu pai pudesse ter acompanhado por mais tempo
minha doce mãe, que tanto o amava que jamais quis outro homem em sua vida; ter
visto a filha crescer e se tornar doutora, ter assistido a suas brilhantes
defesas de tese; ter convivido com seu neto sensível e amorosíssimo; que
conhecesse minha linda e querida esposa, também fã dos ícones dos anos 40 e 50;
que comesse as saladinhas maravilhosas que só minha enteada faz; que pudesse
ter longos papos comigo sobre tudo... Sinto falta tanto das conversas que tive
quanto das que deixei de ter, tanto que por muitos anos após ele falecer, nas
minhas orações noturnas, separava um tempo para bater papo com ele, e imaginar
o que ele responderia de volta. Como gostaria que ele estivesse aqui...
Mas não pôde
ser assim. Ele já não está conosco há mais de trinta anos. Morreu jovem, aos 56
anos de idade, antes que pudesse compartilhar nossa história, antes que pudesse
ser um personagem atuante de nossas aventuras...
Afinal,
podem perguntar, o que eu quero contando isso tudo?
Meu objetivo
com este livro não é ensinar alguma dieta milagrosa, nem prometer a perda de
dez quilos em trinta dias ou 10 cm de abdome em dois meses.
Meu objetivo
é inspirar você, leitor ou leitora, a cuidar da sua saúde, para que tenha a
oportunidade de viver e aproveitar uma vida longa e plena, escrevendo sua
história familiar, profissional, social, deixando memórias eternas no coração
dos que conviveram com você, dos que o amaram, o tanto e o quanto a vida assim
permitir.